sábado, 24 de outubro de 2009

Miragem

No céu de seus olhos,
Sonhei...
No azul de seus olhos,
Me encontrei...
No céu azul de seus olhos,
Me desarmei...
No mar de seus olhos,
Me apaixonei...
No mar azul de seus olhos,
Seu amor!
Céu e mar...
Céu azul...
Mar azul...
Seu olhar no meu olhar!

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Lacunas

O tempo...
Passando...
Voando...
(Des)fazendo sua imagem
E na miragem
Seu (des)afeto,
Transformando-se
Em (des)amor!
Já não há saudade
Nem miragem...
Não há mais lacunas...
Tudo se (des)faz!
O tempo...
Passando...
(Des)aguando...
(Des)velando...
(Des)acreditando...
(Des)apegando-se...
(Des)apaixonando-se...
Quanto (des)Amor!!!

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

O SIMBOLISMO NO BRASIL

Considera-se o ano de 1893 como o marco definitivo do Simbolismo no Brasil, ainda que antes dessa data se possam registrar várias manifestações poéticas ligadas à nova estética. Entre elas, destaca-se a publicação de Canções da decadência, de Medeiros e Albuquerque, em 1887. No ano de 1891, temos o primeiro manifesto Simbolista brasileiro, de Emiliano Perneta, Cruz e Sousa, Bernadino Lopes e Oscar Rosas, publicado na Folha Popular do Rio de Janeiro. Porém, já se consagrara o ano de 1893, com a publicação de Missal e Broquéis, de Cruz e Sousa, como o período de esplendor do Simbolismo no Brasil.
A força parnasiana não permitiu, contudo, que se desse grande divulgação a esse movimento literário brasileiro. Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens são considerados os maiores poetas do movimento, seguidos de Pedro Killerry, Mário Perdeneiras e Emiliano Perneta, entre outros mais.
Cruz e Sousa, “o cisne negro”, era filho de escravos, mas foi educado pelos antigos senhores de seus pais, concluindo o curso secundário, exercendo o jornalismo, o magistério e a literatura. Por ser negro, foi recusado como promotor público de Laguna. A partir de 1890, passou a viver no Rio de Janeiro, com o modesto cargo de arquivista da Central do Brasil. Marcado pela tragédia, viu a esposa enlouquecer depois de perder os três filhos, vítimas da doença que também o mataria – a tuberculose.
Esse poeta revela em seus primeiros trabalhos a influência parnasiana no que diz respeito à temática e à preocupação formal. Sentindo-se como um prisioneiro, um “emparedado”, num mundo de privações e infortúnios, aspirava a outro mundo, espiritual, expresso em suas poesias, marcadas por intenso misticismo e religiosidade.
Outra constante em sua obra é o fascínio pela cor branca, vista ora como simbolização da pureza, ora como manifestação de seu complexo racial e desejo de acesso ao mundo dos brancos. A pregação do amor, do dever, da caridade, do perdão e da grandeza moral também caracteriza a sua obra.
Para situarmos o Simbolismo no Brasil, necessário se faz tecer alguns comentários sobre as características dessa estética, já que vamos fazer uma leitura de Antífona, um dos poemas mais representativos de Cruz e Sousa.
Segundo os simbolistas, a realidade deveria ser expressa de maneira vaga, imprecisa, ilógica. É o que diz Mallarmé:
Nomear um objeto é suprimir três quartos do poema que é feito da felicidade em adivinhar pouco a pouco; sugeri-lo, eis o sonho... deve haver sempre enigma em poesia, e é o objeto da literatura – e não há outro – evocar os objetos. (CL, p. 229)
Associadas a essa característica, temos a utilização de palavras ambíguas, a fuga da lógica discursiva, o amplo uso de metáforas e sinestesias e o hermetismo.
“Antes de qualquer coisa, música” era o postulado de Verlaine. Dotando o poema de expressividade sonora e valorizando o ritmo, a musicalidade, as aliterações, as assonâncias e os ecos, os simbolistas procuravam aproximar a poesia da música, afastando o poema das referências concretas e instaurando uma atmosfera vaga, misteriosa e indefinida.
Desinteressado pela realidade objetiva, o simbolista voltava-se para o seu próprio eu, mas não o eu superficial do Romantismo. Tratava-se de buscar a essência do ser humano, o inconsciente, o subconsciente e os estados de alma.
O desejo de um mundo ideal, do qual o mundo real é apenas uma representação imperfeita, conduz o simbolista a procurar alcançá-lo através da poesia, vendo na arte uma forma de religião. Em alguns autores, esse desejo de evasão associa-se a uma visão cristã. São comuns a oposição entre matéria e espírito, a procura da purificação e a referência a regiões etéreas e ao espaço infinito.
No plano sintático-vocabular, observam-se o uso de vocábulos ligados ao místico e ao litúrgico: alma, infinito, desconhecido, essência, missal, breviário, hinos, salmos, ângelus etc. O uso do conectivo bíblico e, que tem essa dominação por ser bastante usado nos textos bíblicos, e o emprego de iniciais maiúsculas no interior do verso, enfatizando o aspecto simbólico e alegorizante dos vocábulos.
Por fim, o simbolismo herdou a preocupação formal e o descompromisso com a realidade mundana, o que afastou o poeta dos problemas sociais, deixando-o envolto em seu próprio universo. A expressão “alquimia verbal” caracteriza a preocupação dos simbolistas com a linguagem sugestiva e evocativa, enquanto o isolamento é sugerido pela expressão “torre de marfim”.
Seguindo os trilhos dessas características, faremos, a seguir, uma leitura de Antífona.

Ó Formas alvas, brancas, Formas claras
De luares; de neves, de neblinas!...
Ó Formas vagas, fluídas, cristalinas...
Incensos dos turíbulos das aras...

Formas do Amor, constelarmente puras,
De Virgens e de Santas vaporosas...
Brilhos errantes, mádidas frescuras
E dolência de lírios e rosas...

Indefiníveis músicas supremas,
Harmonias da Cor e do Perfume...
Horas do Ocaso, trêmulas, extremas,
Réquiem do Sol que a Dor da Luz resume...

Visões, salmos e cânticos serenos,
Surdinas de órgãos flébeis, soluçantes...
Dormências de volúpicos venenos
Sutis e suaves, mórbidos, radiantes...

Infinitos espíritos dispersos,
Inefáveis, edênicos, aéreos,
Fecundai o Mistério desses versos
Com a chama ideal de todos os mistérios.

Do Sonho as mais azuis diafaneidades
Que fuljam, que na Estrofe se levantem
E as emoções, todas as castidades
Da alma do Verso, pelos versos cantem.

Que o pólen de ouro dos mais finos astros
Fecunde e inflame a rima clara e ardente...
Que brilhe a correção dos albastros
Sonoramente, luminosamente.

Forças originais, essência, graça
De carnes de mulher, delicadezas...
Todo esse eflúvio que por ondas passa
Do Éter nas róseas e áureas correntezas...

Cristais diluídos de clarões alacres,
Desejos, vibrações, ânsias, alentos
Fulvas vitórias, triunfamentos acres,
Os mais estranhos estremecimentos...

Flores negras do tédio e flores vagas
De amores vãos, tantálicos, doentios...
Fundas vermelhidões de velhas chagas
Em sangue, abertas, escorrendo em rios...

Tudo! Vivo e nervoso e quente e forte,
Nos turbilhões quiméricos do Sonho,
Passe, cantando, ante o perfil medonho
E o tropel cabalístico da Morte... (CS, p. 31-2)

Do ponto de vista formal, podemos dizer que esse poema apresenta regularidade métrica e rítmica, pois os versos são decassílabos e as rimas são opostas e alternadas.
A presença de termos eruditos, dicionarizantes, estão presentes no poema. O título é o primeiro exemplo de linguagem pouco usual – Antífona: versículo que se anuncia antes de um salmo. A ele se acrescenta turíbulo: vaso em que se queima incenso nos templos, aras: altares dos sacrifícios nos templos, constelarmente: em forma de constelação, brilhante, mádidas: umedecidas, dolências: mágoa, sofrimento, Réquiem: missa fúnebre. Notamos o uso de reticências e de substantivos comuns escritos com letras maiúsculas: “Indefiníveis músicas supremas,/Harmonias da Cor e do Perfume.../Surdinas de órgãos flébeis, soluçantes.../Dormências de volúpicos venenos/Sutis e suaves, móbidos, radiantes...”.
Notamos que o poema faz uma invocação, um chamamento às Formas, que nada têm de exatas. Ao contrário, “são alvas, brancas, vagas, fluidas, cristalinas, de luares, de neves, de neblinas...”.
As imagens visuais mostram-nos as Formas cada vez mais esgarçadas, mais tênues, invisíveis, em consonância com a extrema musicalidade e as imagens olfativas – “Incensos dos turíbulos das aras...” – as quais, com seu vocabulário litúrgico, enfatizam a espiritualidade, o misticismo, o tom metafísico presente em todo o poema.
A sinestesia, mistura de sentidos, que acentua a dimensão transcendental, constitui um dos alicerces desse poema também caracterizado pela absolutização das palavras, uso de letras maiúsculas no meio e final de alguns versos, e pela sugestão do indizível através das reticências e da musicalidade.
O Simbolismo, aqui representado por um dos mais importantes poemas de nosso maior expoente dentro desse estilo, procura reatar as relações entre vida e poesia, sujeito e objeto. E o faz elaborando textos que não desdenham a preocupação formal e a precisão vocabular parnasianas, mas que a ambas acrescentam a negação da postura racional, objetiva, substituída pelo desejo de transcendência, pela busca de completude espiritual só vislumbrada num mundo metafísico, místico, inconsciente.
As palavras, então, não precisam ter significados exatos. Ao invés disso, elas constituem símbolos, imagens sensoriais, especialmente auditivas, musicais, que, combinadas com imagens visuais, olfativas, expressam a tentativa de unir num só, todos os sentidos, e de, através deles, penetrar na essência de nossa humanidade, de nossa alma violentada por um racionalismo, um objetivismo que nos coisificam, nos oprimem, muitas vezes sem que disso nos apercebamos.
Devemos atentar para a musicalidade de todo o poema, as sinestesias que lhe dão cor e perfume, como nos versos deste quarteto:

Indefiníveis músicas supremas,
Harmonias da Cor e do Perfume...
Hora do Ocaso, trêmulas, extremas,
Réquiem do sol que a Dor da Luz resume... (CS, p. .31)

As aliterações e assonâncias – supremas, trêmulas, extremas -, aliadas às sinestesias, propiciam um clima etéreo, vago, que transforma em música a palavra, em sugestões os significados e, no limite, em Réquiem do sol, isto é, em morte, uma vida resumida pela Dor da Luz. A dor da luz espiritual, do alumbramento interior, pode ter como apoteose, o momento supremo da morte, como na poesia romântica. Entretanto, não se trata de escapismo, de nefelibatismo, ou seja, de pessoas que vivem fora da realidade, no “mundo das nuvens” . Trata-se , sim, dos simbolistas.
Assim sendo, o que ocorre, na verdade, é um apelo ao inconsciente, às camadas mais profundas da mente humana – do “eu profundo” – com a finalidade de resgatar o homem do materialismo desenfreado em que vive. Nesse sentido, a poesia simbolista anuncia a decadência, a falência dos valores burgueses e a busca de novas realidades, invisíveis e interiores, que vão configurar, dentre outros elementos, aquilo que chamamos de Modernidade.

DECADENTISMO E SIMBOLISMO

Quando o século XIX se aproximava de seu fim, uma sensação difusa de que as coisas estavam para acabar impulsionava o ser humano em direção a uma postura pessimista, justificada pelo agravamento dos problemas sociais desencadeados pela Revolução Industrial. As pessoas, durante meio século aproximadamente, conviveram com diferentes tendências de ver e interpretar o mundo em termos estéticos, sem que nenhuma dessas tendências tenha sido capaz de apresentar respostas satisfatórias para angústias de cunho individual ou para problemas de natureza coletiva.
Uma visão decadentista se propagava pela Europa. O artista, testemunha dessa tendência, isolava-se da sociedade, voltando-se para si mesmo, para impressões e intuições que refletiam o tédio e o marasmo provocados pelo mundo que o rodeava.
Historicamente, o movimento simbolista tem suas raízes profundas nos traços românticos que haviam permanecido subjacentes durante a escola realista, naturalista e parnasiana. Nascido na França, entre manifestações anti-realistas, o Simbolismo foi chamado de decadentismo ou decadismo. Esse nome traduz claramente a noção básica que orientava os seus seguidores: a de que a civilização burguesa chegara a tal ponto de decadência, de dissolução moral e espiritual, que a vida se transformara num grande mal-estar, suportável apenas pela fruição dos prazeres mais fortes, como os gozos sensuais. “A sociedade se desagrega sob a ação corrosiva de uma civilização deliqüescente. O homem moderno é um insensível” – afirma o Manifesto decadente.
Desprezando a ciência e a técnica como componentes desse mundo burguês, os simbolistas valorizam a intuição pessoal e a liberdade imaginativa como forma de conhecimento. Substituem a objetividade dos realistas e a impassibilidade dos parnasianos pela convicção de que o significado do mundo decorre da subjetividade que se possa dele apreender: aos indivíduos dotados superiormente cabe a revelação das misteriosas relações que configuram o universo. A poesia passa a ser considerada um esforço de captação e fixação das sutis sensações produzidas pela investigação do mundo interior. Despreza-se a realidade social imediata e produz-se uma arte introspectiva e aristocratizante – uma arte de nefelibatas que, em suas torres de marfim, criam símbolos poéticos das realidades profundas colocadas além da realidade aparente.
Assim, os poetas que, a princípio, adotaram as idéias de Baudelaire, Verlaine e Marllamé, como reação à poesia parnasiana, passaram a ser chamados de decadentes, ou ainda nefelibatas. O movimento adquiriu novas feições, acrescentando ao repúdio pelo mundo burguês uma atitude transcendente, em busca de realidades mais amplas do que aquela que a ciência e o Positivismo haviam revelado e proposto. O símbolo literário seria a forma de traduzir num corpo sensível as revelações desses mundos descobertos pelos artistas – daí a denominação simbolismo. Afinal, como dizia Baudelaire: “As imagens não são um ornamento poético, mas uma revelação da realidade profunda das coisas”.
Exploram-se as qualidades musicais da linguagem em vários níveis: no vocabulário, com a seleção e criação de palavras eufônicas; na combinação vocabular, com rimas internas e aliterações; na métrica e estrofação, com a liberdade rítmica vocabular, a combinação de versos e estrofes de diferentes medidas e feitios e o cuidado com as rimas originais. Procura-se sensibilizar o leitor pela exploração de recursos ligados a vários sentidos, despertando-lhe a apreensão sinestésica. O texto é oferecido como obra de significação aberta, cuja interpretação – quase nunca definitiva – depende de uma cuidadosa e sensível leitura.
Precursor desse estado de alma, o poeta Charles Baudelaire1 já traduzia, em As flores do mal, o estado de espírito finissecular que traria consigo o Simbolismo como uma nova proposta estética. Em poemas como Spleen, Baudelaire externa o sentimento de tédio existencial que encurrala o ser humano, tirando-lhe todas as perspectivas de vida, deixando-o sem esperanças e impedindo-o de vislumbrar uma saída para a situação em que se encontra:

Quando o céu baixo e hostil pesa como uma tampa
Sobre a alma que, gemendo. Ao tédio ainda resiste,
E do horizonte todo enleando a curva escampa,
Destila um dia escuro e mais que as noites tristes,

Quando a terra se torna em úmida enxovia
Onde a Esperança, como um morcego perdido,
Nos muros vai bater a asa tímida e fria
E a cabeça ferir no teto apodrecido;

Quando a visão. A escorrer suas cordas tamanhas,
De uma vasta prisão as grades delineia,
E a muda multidão das infames aranhas
No cérebro da gente estende a teia,

Sinos badalam, de repente, furibundos
E lançam contra o céu um rugido insolente,
Como espíritos que, sem pátria e vagabundos,
Começam a gemer recalcitrantemente. (FM, p. 88 )

As angústias do indivíduo perdido em meio à multidão também aparecem na lírica baudelairiana, traduzindo a impossibilidade de relações sólidas e duradouras. Tudo passava a ser visto como símbolo de uma essência distante e praticamente inacessível para o ser humano que, confuso, vagava à procura de sentido para a sua existência. Talvez, por isso, a chegada do final do século favorecia o desenvolvimento de uma visão decadentista, que resultaria em uma profunda insatisfação com as formas de manifestação estética em voga na Europa. De maneira geral, as pessoas mostravam-se descontentes com os aspectos positivistas e mecanicistas presentes no Parnasianismo e no Naturalismo. Era necessário encontrar uma nova forma de manifestar a visão de mundo que se constituía naquele momento de traços bastantes pessimistas.
E foi assim que aflorou a estética Simbolista como uma tentativa de representar, por meio da arte, a transcendência humana sobre os aspectos materiais. Oficialmente, o início do movimento Simbolista ocorreu em 1886, com a publicação, no jornal francês Le Figaro, de um manifesto do poeta Jean Moréas, que sugeria a troca do termo decadente por simbolismo. Nesse texto, Moreás prenunciava o surgimento de uma estética idealista e transcendente, que se oporia à rigidez formal do Parnasianismo, ao mesmo tempo que não incorreria nos exageros sentimentalistas do Romantismo. O desafio lançado para os escritores era um só: precisavam encontrar uma forma de expressar suas idéias e sentimentos por meio de símbolos.
O primeiro grande autor a vencer tal desafio foi o poeta Charles Baudelaire que, ao lado de Verlaine, Rimbaud e Marllamé, inscreveu o Simbolismo como um dos grandes momentos estéticos da literatura francesa.
Segundo Helena Parente Cunha:

Entre os precursores desta poética, o poeta francês Baudelaire quer dar uma imagem daquele mundo imaterial que a realidade fenomênica esconde, quer mostrar que o “visível”, por místicas “correspondências”, pode proporcionar-nos um esboço do “invisível”, isto é, a misteriosa unidade sob as aparências multiformes.( CL, p.157)

O soneto Correspondências, de Baudelaire, publicado em As flores do Mal, fala-nos de uma “floresta” de símbolos, das correspondências das imagens acústicas, visuais e olfativas, valorizando as sinestesias e a idéia de que com os símbolos poderíamos representar as coisas espirituais através das coisas concretas:

A natureza é um templo em que vivas pilastras
Deixam sair às vezes obscuras palavras;
O homem a percorre através de florestas de símbolos
Que o observam com olhares familiares

Como longos ecos que de longe se confundem
Numa tenebrosa e profunda unidade,
Vasta como a noite e como a claridade,
Os perfumes, as cores e os sons se correspondem.

Há perfumes saudáveis como carnes de crianças,
Doces como oboés, verdes como as campinas,
- E outros, corrompidos, ricos, triunfantes,

Tendo a efusão das coisas infinitas,
Como o âmbar, o almíscar, o benjoim e o incenso,
Que cantam os êxtases do espírito e dos sentidos. (FM, p. 19 )

Se observarmos a terceira estrofe, veremos que o pensamento de Baudelaire é de que as sensações não são meramente sensações, podem transmitir pensamentos de corrupção, riqueza ou triunfo. Já na primeira estrofe está a idéia de que os objetos também não são simplesmente objetos, mas símbolos de formas ideais ocultas por trás deles.
Outro poema significativo é Arte Poética, de Verlaine, escrito em 1874, no qual estão presentes novos elementos fundamentais da estética Simbolista, entre eles a música, a ambigüidade das palavras, a atmosfera de sonho, a luminosidade impressionista, a antieloqüência e a maneira vaga e imprecisa de expressar a realidade:

Antes de qualquer coisa, música
E para isso, prefere o Ímpar
Mais vago e mais solúvel no ar,
Sem nada que pese ou pouse.

É preciso também que não vás nunca
Escolher tuas palavras sem ambigüidade:
Nada mais caro que a canção cinzenta
Onde o Indeciso se junta ao Preciso.

São belos olhos atrás dos véus,
É o grande dia trêmulo de meio-dia,
É, através do céu morno de outono,
O azul desordenado das claras estrelas!

Porque nós ainda queremos o Matiz,
Nada de Cor, nada a não ser o matiz!
Oh! O maiz único que liga
O sonho ao sonho e a flauta à trompa.

Foge para longe da Piada assassina,
Do Espírito cruel e do Riso impuro
Que fazem chorar os olhos do Azul
E todo esse alho de baixa cozinha!

Toma a eloqüência e torce-lhe o pescoço!
Tu farás bem, já que começastes,
Em tornar a rima um pouco razoável.
Se não a vigiarmos, até onde ela irá?

Oh! Quem dirá os malefícios da Rima?
Que criança surda ou que negro louco
Nos forjou esta jóia barata
Que soa oca e falsa sob a lima?

Ainda e sempre, a música!
Que teu verso seja a coisa volátil
Que se sente fugir de uma alma em vôo
Para outros céus e para outras paixões.

Que teu verso seja o bom acontecimento
Esparso no vento crispado da manhã
Que vai florindo a hortelã e o timo...
E tudo o mais é só literatura. (CL, p. 158)

Como se vê, diante de um texto Simbolista não devemos procurar a mensagem. Rico em conotações, o texto Simbolista deve ser lido observando-se a musicalidade, as sugestões e o estado emotivo do poeta.

O FENÔMENO PAULO COELHO: O TRANSCENDENTAL E O AVENTURESCO

A Idade Média surge diante de nossos olhos sempre como cenário de desgraças, pestes, guerras, violências, aliada a um fanatismo religioso intenso, fazendo com que ainda hoje apareça como uma ameaça constante de um futuro iminente. Roberto Vacca em seu livro A próxima Idade Média evidencia que:
Há muitos indícios de que já começou uma época de fenômenos degenerativos, tanto que não parece absurdo falar hoje de uma próxima Idade Média, levando-se em conta que a expressão compreende três hipóteses: que uma era de desordem, destruição e deteriorização esteja para começar; que este início seja iminente; e que esta era será seguida por outra de Renascimento(V, p. 4).
Eco salienta, também, que a Idade Média:
Sob sua aparência imobilista e dogmática foi,para- doxalmente, um momento de revolução cultural. O processo todo foi naturalmente caracterizado por pestes e massacres, intolerância e morte (E, p.99).
E, em seguida, Vacca fala que “os profetas de hoje não dizem que devemos temer anjos, dragões e abismos, mas que devemos temer o holocausto, a superpopulação, o aniquilamento e o desastre ecológico”(V, p. 2).
É na luta por uma melhoria de vida que algumas pessoas tentam de certa forma encontrar alguma força no transcendental. Quer seja pela busca da elevação de seu espírito ou mesmo para resolver os seus problemas materiais.
Vacca diz-nos que na próxima Idade Média “as livres associações não terão vida fácil. O rápido retorno a uma penúria generalizada será acompanhada de violência e crueldade” (V, p. 41).
Talvez seja por toda essa crise por que passamos, desolados em meio a um mundo decadente, sem nenhum paradigma de valores morais, éticos, sociais, etc., que faz com que uma boa parte de pessoas procurem no misticismo a realização de seus anseios ou que “sejam profetas de si mesmas” por absoluta necessidade de sobreviverem a esse caos em que se encontra o mundo de hoje.
O profético Vacca está certo, pois assistimos à onda de profanação que acontece no mundo atual, propiciando as cenas mais degradantes de violência e de violação de todas as normas de convivência entre as pessoas com outras e com elas mesmas.
Segundo Caillois:
As pessoas que se entregam incondicionalmente a algum princípio tendem a reconstituir uma espécie de meio sagrado, que pode fazer eclodir emoções violentas de natureza específica, capazes de tomar um aspecto religioso caracterizado, êxtase, fanatismo ou misticismo,e que, no plano social, dão origem de modo mais ou menos nítido a dogmas e a ritos, a uma mitologia e a um culto (C, p.129).
E Caillois está certo, pois o clima espiritual de nosso tempo é marcado pela carência do divino e essa carência é denunciada em nossa época pela crescente procura do sobrenatural. Nunca saiu tanto livro sobre ocultismo e esoterismo da indústria cultural, como tem saído agora.
Nesse contexto encaixa-se O alquimista, escrito em 1988, sendo considerado o maior sucesso de Paulo Coelho. Segundo o artigo de Apoenam Rodrigues, na revista Isto É, em 03/08/94, O alquimista está na 124.a edição, com 1,65 milhão de exemplares vendidos. Apoenan relata que
A carreira vitoriosa de O alquimista não se restringe às livrarias. A Warner Brothers, na figura do produtor Robert Schwartz, comprou os direitos autorais para um filme com estréia prevista no exterior em 1996.(...)A obra foi também adaptada para história em quadrinhos pela editora Record(IE, p. 78).
De espírito aventuresco, o protagonista Santiago sonha com um tesouro egípcio e parte em busca dele. Na linguagem metafórica do autor a atitude traduz a tentativa da conquista da “própria lenda”, a “luta pelo bom combate”.
O alquimista é sem dúvida nenhuma um best-seller, principalmente pela mensagem, que é diluída em frases que são repetidas inadvertidamente pelos seus leitores.
Podemos classificar esse romance como de aventura, pois segundo Muniz Sodré:
Hoje, como no passado, o leitor projeta-se nas aventuras heróicas, dando vazão ao seu desejo de potência, de aproximar-se dos deuses, e de poder, como o herói, escapar às leis do cotidiano repetitivo e monótono(S, p. 24).
É Roger Caillois quem sustenta:
Na narrativa de aventuras, a narrativa segue a ordem dos acontecimentos. Vai do antes para o depois do prólogo ao desfecho. O desenrolar da intriga reproduz a sucessão dos fatos: ela adota o curso do tempo (S, p. 40).
No plano do aventuresco, como vamos demonstrar a seguir, podemos dividir a história de Santiago, contada em O alquimista, em várias etapas, tais como: venturas e desventuras em Tânger; peregrinação pelo deserto; a descoberta do amor; encontro com o alquimista; a caminho das Pirâmides e, finalmente, a volta para casa.
O alquimista narra a história de um pastor espanhol, que sonha em encontrar um tesouro nas Pirâmides do Egito:
Certa noite, um jovem pastor tem um sonho repetido: fala de um tesouro oculto, guardado perto das Pirâmides do Egito. O rapaz resolve seguir seu sonho e, defronta-se com os grandes mistérios que acompanham o Homem desde os começos dos tempos: os sinais de Deus, a Lenda Pessoal que cada um de nós precisa viver, a misteriosa Alma do Mundo, onde qualquer pessoa pode penetrar se ouvir o próprio coração (...)( A, p.1).
A fim de ajudá-lo em suas buscas, Melquisedec, rei de Salém, vende-lhe duas pedras mágicas, chamadas Urim e Turim:
- Tome - disse o velho, tirando uma pedra branca e uma pedra negra que estavam presas no centro do peitoral de ouro. - Chamavam-se Urim e Turim. A preta quer dizer “sim”, a branca quer dizer “não”. Quando você não conseguir enxergar os sinais, elas servem. Faça sempre uma pergunta objetiva (A, p. 57).
A partir daí, Santiago começa a sua aventura. Vai para Tânger, na África. Lá é assaltado e sofre a sua primeira desilusão. Sem dinheiro e com fome, resolve abrir seu alforje para ver o que tinha lá dentro, só encontrando “o livro grosso, o casaco, e as duas pedras que o velho lhe dera” (A, p. 69).
Como as pedras serviam para adivinhação, resolveu perguntar se a benção do velho ainda continuava com ele, tendo imediatamente a confirmação. Desse modo, fica mais confiante, não se desespera, pois
O mundo novo aparecia na sua frente sob a forma de um mercado vazio, mas ele já vira aquele mercado cheio de vida, e nunca mais ia se esquecer. (...) Sentiu de repente que ele podia olhar o mundo como uma pobre vítima de um ladrão, ou como um aventureiro em busca de tesouro (A, p.71).
Desse modo, passa a se virar em Tânger, até que conhece o Mercador de Cristais e começa a trabalhar para ele, embora não fosse “exatamente o tipo de emprego que lhe fazia bem” (A, p.83).
Trabalhou por onze meses e nove dias para o Mercador de Cristais. Tinha como objetivo juntar dinheiro “o suficiente para comprar cento e vinte ovelhas, uma passagem de volta, e uma licença de comércio entre o seu país e o país onde estava” (A, p. 95). Conseguiu o dinheiro finalmente. Quando vai arrumar os seus pertences para retornar à Espanha, as duas pedras, dadas pelo velho rei, rolam pelo chão do quarto. Santiago, então,
(...)pegou o Urim e o Turim no chão, e teve novamente aquela estranha sensação de que o rei estava perto. Trabalhara duro durante o ano, e os sinais indicavam que agora era o momento de partir (A, p.98).
Foi-se, sem se despedir do Mercador de Cristais, “mas estava segurando o Urim e o Turim nas mãos, e estas pedras lhe traziam a força e a vontade do velho rei”(A, p.99).
Chamamos a atenção, neste ponto, para a forte presença do transcendental na aventura de Santiago, principalmente nos seus momentos de dúvida, fazendo-o sempre recorrer às pedras mágicas.
Estava muito mais próximo de Andaluzia, sua cidade, do que das Pirâmides. Num momento de indecisão, tão comum a todas as criaturas quando partem em busca de seus tesouros, Santiago vacila, questionando-se:
Sei porque quero voltar para minhas ovelhas. Eu já conheço as ovelhas; não dão muito trabalho, e podem ser amadas. Não sei se o deserto pode ser amado, mas é o deserto que esconde o meu tesouro. Se eu não conseguir encontrá-lo, poderei sempre voltar para casa. Mas de repente a vida me deu dinheiro suficiente, e eu não tenho todo o tempo que preciso; por que não? (A, p.100).
Resolve, afinal, continuar a sua aventura. Junta-se a uma caravana e parte para o deserto em companhia de um inglês. Faz, também, “amizade com o cameleiro que viajava sempre ao seu lado” (S, p.114).
Ao chegar no oásis, conhece Fátima:
Quando ele olhou seus olhos negros, seus lábios indecisos entre um sorriso e um silêncio, ele entendeu a parte mais importante e mais sábia da Linguagem que o mundo falava, e que todas as pessoas eram capazes de entender em seus corações. E isto era chamado de Amor,(...)(A, p. 153).
Apaixonam-se. Passam a se encontrar sempre no mesmo horário, perto do poço. Fátima, ao saber do sonho de Santiago e de toda a sua peregrinação, sugere, quaisquer que sejam as circunstâncias, que ele siga em direção à sua lenda.
Depois de algum tempo, Santiago tem a visão “de um exécito de espadas desembainhadas, entrando no oásis” (A, p. 162). Procura, então, os chefes das tribos e o mais importante deles disse-lhe:
Para cada dez inimigos mortos, você receberá uma moeda de ouro. (...) Entretanto, as armas não podem sair do seu lugar sem experimentarem a batalha (...) Se nenhuma delas tiver sido utilizada amanhã, pelo menos uma será usada em você (A, p.170).
Mas, Santiago sabia que
Se morresse amanhã, seria porque Deus não estava com vontade de mudar o futuro. Mas teria morrido depois de haver cruzado o estreito, trabalhado em uma loja de cristais, conhecido o silêncio do deserto e os olhos de Fátima.(...) Se morresse amanhã, seus olhos teriam visto muito mais coisas do que os olhos dos outros pastores, e o rapaz tinha orgulho disto (A, p.173).
Este seu pensamento, era-lhe confortador, pois ainda que morresse, havia vivido parte de sua aventura.
Nesta mesma noite, Santiago é abordado por um “estranho cavalheiro”, travando assim conhecimento com o Alquimista de Al-Fayoum.
Na manhã seguinte, o oásis, conforme a sua premonição, foi atacado por “dois mil homens armados” do deserto e mais de quatrocentos deles morreram. Santiago, então, recebe do chefe tribal cinqüenta moedas de ouro.
Em companhia do Alquimista, resolve continuar a sua aventura. Durante a viagem, os dois são atacados por três ladrões árabes que acabam deixando-os “partir sem maiores contratempos, com todos os seus pertences” (A, p.205). Alguns dias depois, são novamente atacados por outros salteadores e ameaçados de morte, caso Santiago não se transformasse em vento. Somente no terceiro dia, do alto de um morro, ele começa a conversar com o deserto (“O que é o amor?” pergunta o deserto. “Amor é o sentimento que move o mundo”, responde o pastor (A, p.218). Por último, surge “a Mão que tudo havia escrito” (A, p.225), uma imensa mão que o transforma em vento. Os ladrões ficaram tão aterrorizados e amedrontados com a “bruxaria”, que os deixaram partir.
Quando eles estavam próximos às Pirâmides, o Alquimista despede-se de Santiago. Só que, antes de se separarem, o Alquimista leva o pastor a um mosteiro e faz com que ele presencie a transformação do chumbo em ouro. Depois disso, despedem-se e Santiago segue rumo ao seu destino.
Assim que chega às Pirâmides, aparecem salteadores e roubam-lhe todo o seu dinheiro. Ao ser interrogado por um dos ladrões por que ali estava, o pastor contou-lhe sobre o sonho
que tivera e o chefe dos salteadores resolveu deixá-lo ir, dizendo-lhe:
Aí, neste mesmo lugar onde você está, eu também tive um sonho repetido há quase dois anos atrás. Sonhei que deveria ir até os campos da Espanha, buscar uma igreja em ruínas, onde os pastores costumavam dormir com suas ovelhas e que tinha um sicômoro, haveria de encontrar o tesouro escondido(A, p.242).
Livre, Santiago retorna à Espanha e volta à igreja abandonada. De posse do tesouro, parte em busca de Fátima.
Como pudemos observar, a aventura de Santiago traz-nos uma mensagem de acontecimentos que costumam ocorrer na vida de muitas pessoas: saem em busca do tesouro, na aventura da vida, para, velhas e cansadas, volverem ao ponto de partida, onde descobrem os tesouros de suas vidas.
Da leitura de O alquimista, fica-nos a idéia da força do transcendental e do aventuresco na constituição de um best-seller, conforme a opinião de Muniz Sodré, uma vez que este tipo de obra tem o seu público garantido.
Além desses dois elementos primordiais, para se obter um best-seller, Sodré sugere ainda mais alguns, que podem melhor temperar a receita: o mítico, a atualidade informativo-jornalística, o pedagogismo e o descompromisso com a retórica culta ou consagrada.
No caso de O alquimista, tais ingredientes também estão presentes, como passamos a demonstrar:
Mítico - “A narrativa possui vários arquétipos míticos que transformam muitos dos personagens em verdadeiros tipos modelares” (S, p.8).
Como já dissemos, Santiago é um pastor que, tendo duas vezes o mesmo sonho, sai em busca de sua lenda pessoal. Passa por muitos obstáculos e desafios para finalmente atingir seu objetivo. Mostra-se um vencedor, principalmente por ter tido a determinação de ir até o fim.
Santiago desperta no leitor a chama da esperança, principalmente nessa época atual de desesperança e desenganos, em que as pessoas buscam alguma força transcendental para que possam lutar por sua própria sobrevivência. Santiago simboliza o herói. Sempre exteriorizando o seu pensamento, suas análises, deduções e ilações, fazendo com que o leitor passe a assimilá-los e a segui-los como se fosse uma fórmula mágica para a resolução de seus problemas.
Um exemplo disto é o pensamento: “E quando você quer alguma coisa, todo o universo conspira para que você realize seu desejo” que aparece exatamente igual nas páginas 48, 70, 98 e 180.
A cigana, Melquisedec (Rei de Salém) e o alquimista representam a superstição, o mítico e a busca de uma força transcendental.
Fátima simboliza a cara metade de Santiago, o amor em toda sua plenitude e completude entre homem-mulher.
O personagem ladrão é o típico arquétipo do mal, assim como os salteadores. São os oportunistas que, para conseguirem o que querem, não medem as conseqüências e não se importam com o que fazem.
O Mercador de Cristais representa simbolicamente as pessoas que se acomodam na vida, não a questionam, aceitam-na do jeito que ela é.
O Mercador de Cristais viu o dia nascer, e sentiu a mesma angústia que experimentava todas as manhãs. Estava há quase trinta anos naquele mesmo lugar, uma loja no alto de uma ladeira, onde raramente passava um comprador. Agora era tarde para mudar qualquer coisa: tudo que havia aprendido na vida era vender e comprar cristais (R, p.75).
Atualidade informativo-jornalística -
Transparece em todos os relatos do livro a necessidade de informar, de pôr o leitor ao corrente de grandes fatos, teorias e doutrinas -seja do próprio autor, seja da própria época - de uma maneira fácil e acessível, a exemplo da linguagem jornalística (S, p.8).
Em todo o livro, o autor informa ao leitor algumas teorias e doutrinas sobre a alquimia, numa linguagem fácil, a exemplo da linguagem jornalística. Poderíamos exemplificar com o prefácio do romance em que Paulo Coelho explica sobre o fato de O alquimista ser um livro simbólico e faz um relato sobre a sua própria procura em relação a este tema. Informa ao leitor sobre o que seja alquimia e quais são os tipos de alquimistas que existem.
Desse modo, o leitor vai automatizando e interiorizando as fórmulas para conseguir ir em busca de sua meta. Fórmulas simples, repetitivas, que dependem somente da vontade e determinação do próprio leitor:
Só sentimos medo de perder aquilo que temos, sejam nossas vidas ou nossas plantações. Mas este medo passa quando entendemos que nossa história e a história do mundo foram escritas pela mesma Mão (A, p.115).
O leitor, também, através da peregrinação de Santiago, informa-se de episódios históricos reais. Paulo Coelho, para escrever esse romance, foi até os Pirâmides do Egito, e ao Deserto do Saara, pesquisar a origem e os principais códigos da Grande Obra.
Pedagogismo -
Há também a intenção clara de ensinar alguma coisa, isto é, um explícito pedagogismo. Através daí vislumbra-se a ideologia do autor. O pedagogismo é uma tentativa de respostas a questões reais levantadas pelo romancista (S, p.9).
No decorrer de O alquimista há uma intenção clara por parte do autor em ensinar alguma coisa. Nesse caso, é a ideologia de Paulo Coelho, que é um místico, voltado para o transcendental. Segundo Apoenan Rodrigues:
Paulo Coelho já fez escola. Seguindo a tradição de transmitir os conhecimentos da magia, ele já formou alguns discípulos. No momento tem um em Madri, um em Lisboa, dois em Salvador e um em São Paulo (IE, p. 79).
Cita também que,
A recepcionista carioca Maria Inês Pinto, 29 anos, considerada pelo próprio Paulo Coelho sua leitora padrão, aprendeu todas as lições. “Ele ensina a gente a não deixar morrer nosso ideal, a descobrir o poder que está dentro de nós”, diz. “Basta saber trabalhar suas dicas que podemos ser mais felizes” (IE, p.78).
Descompromisso com a retórica culta -
Ao recalcar industrialmente o cordel no século XIX, a literatura de massa também abriu mão de uma linguagem própria, dando às costas à problemática do estilo. De uma maneira geral, a retórica do folhetim é pobre, esquemática, destinada apenas a armar com eficácia a seqüência dos acontecimentos fictícios. E esta retórica é sempre subsidiária da literatura culta (S, p.9).
O alquimista retoma uma retórica literária fácil, de informações simples, reavivando temas míticos tendo como influência o próprio mercado na organização da narrativa. Com uma linguagem direta esse romance consegue ser acessível a todos.”Seus leitores não se importam se o livro é mal escrito ou narrado como uma fórmula da Maga Patalógica” (IE, p. 78), diz-nos Apoenan Rodrigues.
Como vemos, o fenômeno Paulo Coelho é um fenômeno do best-seller! Que o diga Luiz Suwarez, editor da Companhia das Letras, considerada a editora mais sofisticada, pela qualidade de seus lançamentos. Ao ser entrevistado por Apoenam Rodrigues, em 02/11/94, Suwarez declarou que
acredita que os livros de sucesso estimulam leitores a novas descobertas literárias(...) e que o Brasil não está deixando de ser um país da qualidade porque Paulo Coelho faz sucesso. Ele tem uma proposta clara, que faz com muita competência, e atinge um público que provavelmente não estava aí (IE, p.6).
Podemos concluir que O alquimista é realmente um best-seller, porque conseguiu atingir a um número muito grande de leitores, pela sua alta vendagem, em virtude de falar a linguagem que esses leitores buscavam avidamente para alimentarem seus sonhos e desejos de uma vida melhor.
Na verdade, todos nós buscamos alguma coisa e nos identificamos com aqueles que falam a nossa linguagem. É assim que, no íntimo, são aventureiros os que buscam os livros de aventura nos quais realizam esse anseio.
Os que se sentem frustrados e acovardados diante da vida buscam nos autores místicos os recursos transcendentais para a aquisição de uma força psíquica capaz de reencorporá-los à luta pela sobrevivência.
Na atualidade, estamos vivendo momentos apocalípticos, o número dos que campeiam amargurados e desiludidos cresce dia-a-dia, crescendo concomitantemente o de autores de tempos venturosos, mediante a transmissão de mensagens míticas ou transcendentais, tendo como objetivo ensinar ao homem como resolver os seus problemas de ordem exclusivamente material.
O personagem Santiago é um indivíduo que em busca de seu “tesouro”, de sua “lenda pessoal”, encontra afinal a solução de todos os seus problemas de ordem material.
Cada um de nós, na verdade, é um pouco Santiago. Falamos dos bens do Céu, mas queremos mesmo os da Terra, pois precisamos do transcendental para viver a aventura da vida. Enquanto houver no mundo um descontente que seja, este buscará em alguém ou em alguma fonte informativa o motivo para voltar a acreditar na luta da cotidiano.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

A PROFANAÇÃO DO SAGRADO NO DIÁLOGO DE SARAMAGO COM A BÍBLIA

Nos dias de hoje já não é possível viver idolatrando a ciência e o progresso, pois as pessoas não acreditam nessas entidades com a mesma fé do século passado.
Diz-nos Gilberto Kujawski, em O sagrado existe, que “é possível suspender o juízo sobre a existência de Deus, e desprezar as ultimidades (o mistério da vida e da morte) quando se crê com fé inabalável na Ciência e no Progresso” (GMK, p. 8), pois
(...) quando tais crenças começam a falhar, quando se descobre que a Ciência não nos põe em contato com a realidade, e sim com um esquema estatístico de probabilidade, e que o Progresso automático e irreversível não existe, então não se tem mais remédio senão ouvir de novo o apelo da transcendência e voltar à senda imemorial do sagrado (GMK, p. 8).
Se os mitos falharam, isto quer dizer que precisamos redescobri-lo em todo o seu esplendor. “O mito é aquela mentira primordial que nos desvela o corpo da verdade” (GMK, p. 9), definindo-se como uma narrativa arquetípica. Os feitos da história e da razão passam, mas o mito permanece, porque sua função será sempre a de fazer crescer nossa conscientização, colocando-nos em plena harmonia vital e intelectual com a realidade.
Gilberto de Mello Kujawski cita duas leituras que vieram incentivá-lo na elaboração de O sagrado existe, e uma delas foi o romance de José Saramago, O evangelho segundo Jesus Cristo, “saudado efusivamente, dos dois lados do Atlântico, pelo entusiasmo unânime da crítica, o que não era de deixar de ser um ponto intrigante” (GMK, p. 11), pois segundo o ensaísta, “Saramago se declara ateu, militante histórico do Partido Comunista em Portugal. Ele é ateu por convicção pessoal e ideológica” (GMK, p. 11). Diz-nos que Saramago também se orgulha de ser homem do povo, identificado com as crenças e as tradições populares de sua terra. “Eis conflagrada a tensão, a ambigüidade: como indivíduo, Saramago é ateu, e como homem do povo não escapa de ser crente, ligado à tradição de sua gente” (GMK, p. 11).
Tanto é verdade que, ao ser entrevistado pela imprensa em São Paulo, José Saramago declarou: “Somos todos cristãos em Portugal, se não professos ao menos nadamos todos neste caldo de cultura. Alguma relação temos que ter com ele, nem que seja crítica”.
Segundo Kujawski, a santa dialética vem em socorro do grande escritor, mostrando-lhe a saída:
(...) Sua relação com o cristianismo será crítica. Pois é nessa ambigüidade fundamental que está a força do seu livro, e, aliás, de todos os seus livros: a crítica assumindo a forma de constante ironia, quando esquecida de si mesma, convertendo-se em lirismo. (...) Saramago não crê em bruxas (...) (GMK, p. 11).
O texto saramagueano é tecido de paródia e ironia. Sabemos que o melhor da ficção portuguesa é feito de ironia, pelo menos desde Gil Vicente, prosseguindo com Camões, Eça de Queirós e Fernando Pessoa.
Gilberto Kujawski salienta ser a ironia o apanágio do romantismo e associa esse romantismo a Saramago, por ser ele orgulhoso de sua raiz popular, dizendo-nos que não há maniqueísmo em sua posição diante de Saramago, apenas matizamento na avaliação crítica. O que não o impede de reconhecer que “a interpretação da crença popular em Saramago, resvala freqüentemente para o grotesco e o caricato” (GMK, p. 11). Para exemplificar, faz uma uma analogia entre a fé do carvoeiro e o ateísmo do autor de O evangelho segundo Jesus Cristo:
Saramago, escritor de talento, inverte a fórmula cediça e descobre algo que está aí, mas que ninguém reparara - o ceticismo do carvoeiro: a falta de fé rude, agreste, desajeitada, saloia, própria do campônio que tira o chapéu em respeito ao senhor cura, passando a enrolá-lo nas mãos com embaraço que trai sua profunda suspicácia anticlerical, tão vigorosa e inabalável do povo em matéria de fé (GMK, p. 12).
Ao presenciarmos o posicionamento de Gilberto Kujawski, não nos cabe, neste estudo, concordar ou discordar de sua opinião. Se a situamos, foi para mostrar que as interferências bíblicas do texto saramagueano podem causar impacto em relação à desmitificação de Jesus.
O evangelho segundo Jesus Cristo é um romance que, através de um narrador onisciente, relata a história de Jesus numa visão bastante irônica e paródica, transcontextualizando a versão dos evangelistas bíblicos.
Ao lermos o texto saramagueano, temos a impressão de estarmos diante de um narrador distanciado da explicação religiosa que tem sido conferida ao longo do tempo a determinadas passagens bíblicas (tanto as do Antigo como as do Novo Testamento), dessacralizando-as através da profanação das figuras de Deus e de Cristo.
No Antigo Testamento, Deus tem sido mostrado como Senhor dos exércitos, que se ira contra o comportamento do homem e o pune severamente, até com a destruição. O narrador de O evangelho segundo Jesus Cristo procura desmitificar este Deus vingador, fazendo dele um ser menor, ou seja, dá maior dimensão ao Diabo, ao qual enaltece-o, chegando mesmo a colocá-lo igual a deus, e, em alguns casos, até superior moralmente, por ser ele, o Demônio, muito mais previdente, solidário, mais próximo do homem, e até mais benevolente.
Ao se encontrar com Maria, na festa da Páscoa em Jerusalém, Jesus é alertado por ela em relação ao Pastor com quem esteve trabalhando e que Maria acusa de ser o Diabo. Mas mantém-se resistente, porque não queria sacrificar a Deus a ovelha, que criara com desvelo, e diz à sua mãe que “quando um e outro estão de acordo, não se pode distinguir um anjo do Senhor, de um anjo de Satã” (ESJC, p. 254). Assim, Cristo confessa à Maria que se for para salvar o cordeiro pelo Diabo, ele (Cristo) então está com o Diabo.
Em relação aos milagres, ainda conforme o discurso crítico, o narrador ironiza-os, a partir de um expediente temporal:
(...) o tempo dos milagres, ou já passou, ou ainda está para chegar, além disso, milagre, milagre mesmo, por mais que nos digam, não é boa coisa, se é preciso torcer a lógica e a razão própria das coisas para torná-las melhores (ESJC, p. 77).
Nessa sua visão de Deus, de Jesus e dos milagres, o narrador apresenta-nos um outro deus, um outro Jesus, e outras manifestações milagrosas, sem a derrogação das leis naturais e sem também torcer a lógica.
O deus que nos é apresentado no texto saramagueano é, de fato, bem menor que Deus, enquanto o Jesus nos é apresentado como sendo um homem comum, com defeitos, vícios e imperfeições. Afinal, Roger Caillois, em O homem e o sagrado, nos diz que:
(...) a religião é universalista, mas também, de modo correlato, personalista. Tende a isolar o indivíduo de forma a situá-lo em face de um deus que ele conhece, então, menos por ritos do que por uma efusão de criatura e criador. O sagrado torna-se interior e já não interessa senão a alma. Vê-se crescer a importância da mística e diminuir a do culto.
Dentro da literatura contemporârea, o texto saramagueano confirma que “tudo isto são coisas da terra, que vão ficar na terra, e delas se faz a única história possível” (ESJC, p. 18).
Ao discutir o fazer histórico na literatura, Affonso Romano de Sant’Anna, em História e ideologia, afirma que:
(...) se nas narrativas modernas o personagem pode razonar sua história e afetar os eventos em curso, (...) devemos começar por considerar alguns componentes dramáticos de ficção real de nossos dias, procurando conhecer o que foi nossa recente discursividade até agora.
Affonso Romano também nos diz que a nossa geração foi educada dentro do conceito de história que tem, na realidade, dupla leitura: “uma é teológica judaico-cristã e a outra é sócio-política”. Segundo ele, na vertente sócio-política, ensinaram-nos que a história era um trajeto entre a opressão e a liberdade, isto é, uma história em progresso, configurada entre um jogo dialético de teses, antíteses e sínteses. Já o texto cristão nos foi passado através da fala dos profetas e dos manuscritos dos evangelistas.
Segundo Affonso Romano, fazer história hoje em dia é subverter, inverter, revolucionar. “História é a emergência do eu, da burguesia e do povo. História é diferença e paródia”, pois a modernidade e a síndrome da ruptura teriam paradoxalmente se esgotado naquilo que outros nomearam de pós-modernidade, ou seja, a não mais se romper, mas em colocar os diversos passados no presente, jogando com a dualidade de destruicão/reconstrução.
No dizer de Affonso Romano:
Hoje sabemos que não há uma história. A grande redescoberta epistemológica, antiga, mas revivificada nos nossos dias é a descoberta da “leitura”. A História é uma construção discursiva e simbólica, e cada “leitor” ou analista produz o seu sentido, o mais verossímil possível em relação ao ponto de observação em que se situa. História é a liberdade de viver e criar histórias.
A citação acima nos conduz à abordagem de Linda Hutcheon em relação à ideologia da modernidade que não nega a existência do passado, mas questiona-o através de sua escritura, já que a História não existe a não ser pelo texto, e isso não nega a História.
Ancorados ainda nos fundamentos teóricos de Linda Hutcheon, em Uma teoria da Paródia, vamos percorrer as páginas do romance saramagueano, mostrando que Saramago, nesse romance, tenta restabelecer uma aliança com a tradição de forma mais crítica, e não nostálgica, dentro dessa visão de modernidade, ao contrário dos escritores modernos que esgotaram as possibilidades de ruptura com o antigo.
O que se faz hoje em dia não é necessariamente melhor do que o anterior, é uma outra leitura, pois o discurso intertextual ou paródico é um discurso de revitalização do antigo. A paródia, para Linda Hutcheon, é um dos modos maiores de construção formal e temática de textos, possuindo, também, uma função hermenêutica com implicações simultaneamente culturais e ideológicas. “O escritor deve estar em pé de igualdade com o leitor/ouvinte num esforço comum para elaborar sentidos a partir de uma linguagem comum a ambos” (LH, p. 16).
O evangelho segundo Jesus Cristo é uma ficção historiográfica, que tem como suporte uma consciência teórica sobre a História e a ficção como criações humanas, passando, desse modo, a ser a base para que o autor e o leitor repensem e reelaborem as formas e os conteúdos do passado.
A seguir, através das teorias de Roberto Vacca e Umberto Eco, promomo-nos a fazer uma analogia da época atual com a Idade Média.

Uma nova Idade Média

A próxima Idade Média, de Roberto Vacca, aborda uma futura situação de crise generalizada, nos países desenvolvidos, tendo como duração talvez um século em lugar de um milênio, sendo esta duração menor do que a Idade Média anterior.
Segundo Vacca:
a expressão próxima Idade Média compreenderá três hipóteses: que uma era de desordem, destruição e deteriorização esteja para começar; que este início seja iminente; e que esta era será seguida por outra de Renascimento.
Hoje, segundo Vacca, “estamos muito mais predispostos a fazer previsões e planificações do que o fomos no passado”. Sua convicção faz com que anuncie que uma nova era medieval já está no início, ainda mais se considerarmos que só se começou a falar em Idade Média passada, depois que ela terminou. Sabe que não será difícil acusarem seu livro de catastrófico e de pessimista pelas teses que defende.
Uma de suas teses é a de que a proliferação dos grandes sistemas até atingirem dimensões críticas instáveis e antieconômicas será seguida por uma de deteriorização rápida, tanto quanto a expansão precedente, e será acompanhada por numerosos acontecimentos catastróficos. Serão duas as características principais que deverão ser reconhecidas como sintomas da próxima Idade Média: a primeira será uma brusca diminuição da população; a segunda, um dilaceramento dos grandes sistemas e sua transformação num grande número de pequenos subsistemas independentes e autárquicos.
Vacca não vai antecipar um despertar religioso. Quer apenas mostrar os modos pelos quais os grandes sistemas cresceram desmedidamente e que devem ser analisados a fim de se conhecerem as causas de sua deteriorização. Os dramas a que se refere se constituirão de heca-tombes de população muito mais notáveis do aquelas causadas pelas grandes guerras, pelos acidentes de tráfego e pelas epidemias. Enfim, Vacca tem como ponto de vista que “todos nós somos profetas, não tanto porque decidamos sê-lo, mas por absoluta necessidade”.
Em Viagem na irrealidade cotidiana, Umberto Eco faz um estudo sobre a profecia de Vacca, questionando se o roteiro de Vacca é realmente apocalíptico ou se é a enfatização de algo que já existe. Tenta livrar a noção da Idade Média da aura negativa com que a maioria das pessoas a vêem. Segundo Eco, vivemos numa época em que “aquilo que acontece em cinco anos pode às vezes equivaler ao que sucedia em cinco séculos”.
A meta de Eco é traçar um objetivo preciso para medir as tendências e situações de nosso tempo que possam se assemelhar àquelas da Idade Média. Diz-nos que estamos vivendo uma crise da paz e traça um paralelo medieval, mostrando-nos que a Idade Média via como intimamente ligados o decréscimo de população, o abandono das cidades e a carestia dos campos, a dificuldade de comunicação e também a crise do controle central.
Hoje, segundo Eco, parece acontecer o oposto, pois o excesso de população, que interage com o excesso de comunicação e transportes, faz com que as cidades se tornem inabitáveis não por destruição e abandono, mas por paroxismo de atividade, pela poluição atmosférica e pelo acúmulo de lixo que deturpa e torna irrespiráveis as grandes construções que se renovam. Desse modo, as cidades ficam cheias de imigrantes, mas esvaziadas de seus habitantes antigos que somente a usam para trabalhar.
De um modo geral, os trabalhadores menos favorecidos moram em subúrbios ou favelas, enquanto a classe mais abastada retira-se para fora da cidade, construindo bairros elegantes e autônomos. Ainda segundo Eco, o paralelo se inverte para ser restabelecido, pois
(...) um enorme desenvolvimento tecnológico provoca bloqueios e desarranjos (...). Por outro lado, a sociedade de consumo no mais alto nível não produz objetos perfeitos (...) e a civilização está se tornando uma sociedade de objetos usados e inúteis: (...) enquanto assistimos a desmatamentos, abandono dos cultivos, poluição hídrica, atmosférica e vegetal, desaparecimento de espécies animais (...).
No dizer de Eco, essa nova Idade Média será uma época de transição permanente na qual serão adotados novos métodos de adaptação:
(...) o problema não será tanto o de conservar cientificamente o passado quanto o de elaborar hipóteses sobre o aproveitamento da desordem, entrando na lógica da conflitualidade. Nascerá, como já está nascendo, uma cultura de readaptação contínua nutrida de utopia (...). A Idade Média conservou a seu modo a herança do passado não para hibernação, mas para contínua retradução e reutilização, (...).
De acordo com as teorias de Roberto Vacca e de Umberto Eco, relacionadas à Idade Média, podemos compreender perfeitamente não apenas o comportamento intelectual do homem como também todo o seu comportamento vivencial.
Poderíamos chamar a época atual de uma Idade Média invertida ou às avessas, isto é, na antiga Idade Média tudo era proibido e a proibição se fazia a ferro e fogo. Na atual, ao contrário, tudo é permitido. Na primeira, elaborava-se às escondidas o surgimento de uma Nova Era, ou seja, o chamado Renascimento artístico, literário e científico. Na atual, mesmo sem o saber, o homem está elaborando, vide Eco, o surgimento de uma Nova Era, um grau maior de espiritualização, quando também as artes, a filosofia e a ciência encontrarão o seu verdadeiro caminho, criando uma nova civilização.
No momento, os valores antigos são contestados, combatidos e, muitos, destruídos. Nunca se teve tanta liberdade para discutir e analisar Deus quanto agora. O sagrado é vasculhado, pesquisado e analisado. Os homens nada temem, tudo discutem, aceitam ou recusam sem nenhum medo de qualquer represália, uma vez que estão vivendo um período de liberdade quase absoluta.
Esse mundo é muito parecido com aquele inferior, citado pelo narrador de O evangelho segundo Jesus Cristo. Trata-se de uma história, na verdade uma criação saramagueana aos moldes bíblicos da parábola, contada por um grupo de viajantes em Jerusalém e presenciada por Jesus, quando menino, falando sobre a criação feita pelo Diabo de um mundo subterrâneo, onde tudo é permitido e, portanto, o pecado não existe:
(...) E como o Diabo, de quem Deus ao princípio fora amigo, e ele favorito de Deus, (...) diziam os velhos, estivera presente no acto do nascimento de Adão e Eva, e tinha podido aprender como se fazia, então repetiu no seu mundo subterrâneo a criação de um homem e uma mulher, com a diferença, ao contrário de Deus, de não lhes ter proibido nada, razão por que não teria havido, no mundo do Diabo, pecado original. Um dos velhos atreveu-se mesmo a dizer, E como não houve pecado original, também não houve nenhum outro (ESJC, p.235-6).
Hoje, no nosso mundo, os tabus caem, o pecado desaparece e a ação humana se realiza quase com liberdade total.
A teoria de Vacca está sendo comprovada nos nossos dias. E é com base nela que o sagrado e o profano se interagem.
Podemos até compreender o porquê de o texto saramagueano ironizar a figura de Deus, pois, geralmente, as interpretações teológicas apresentam um Deus vingativo, castigador, perseguidor e destruidor. A matança dos inocentes, por exemplo, o narrador coloca-a como responsabilidade de Deus, já que este era o Senhor de seu servo José, a quem é atribuída diretamente a morte das crianças inocentes:
Mas é bem verdade que a recta escrita de Deus só em pouco coincide com as tortas linhas dos homens, vejamos o dito caso de Abraão, a quem apareceu o anjo a dizer, no último momento, Não levantes a mão sobre o menino, e veja-se o caso de José, que tendo Deus, em lugar do anjo, posto no seu caminho um cabo e três soldados faladores, não aproveitou o tempo que tinha para salvar da morte os meninos de Belém. Porém, se os bons começos de Jesus não se perderem na mudança da idade, talvez que ele venha a querer saber por que Deus salvou a Issac e nada fez para salvar os tristes infantes que, inocentes de pecado como o filho de Abraão, não encontraram piedade perante o trono do Senhor (ESJC, p. 144).
Com base nesse acontecimento, o narrador coloca em Jesus um sentimento de revolta contra seu pai e o próprio Deus:
E, assim sendo, Jesus poderá dizer ao seu progenitor, Pai, não tens de levar toda a culpa, e, no segredo do seu coração, quiçá ouse perguntar, Quando chegará, Senhor, o dia em que virá a nós para reconheceres os teus erros perante os homens (ESJC, p. 144).
A pouco e pouco, Saramago vai desvestindo Jesus de suas virtudes sacralizadoras e im-pregnando-o das imperfeições humanas. De homem santo, acaba sendo, segundo a pena sara-magueana, igualado aos frágeis mortais pecadores.
O Deus, onipotente, onipresente, onisciente, misericordioso e justo, também não é pos-suidor de nenhum desses atributos, porque é o autor do sofrimento do homem e criando o pe-cado, transformou o homem em pecador pelos excessos que comete:
Fôssemos nós tão imprudentes, ou tão ousados, como as borboletas, falenas e outras mariposas, e ao fogo nos lançaríamos, nós todos, a uma espécie humana em peso, talvez uma combustão assim intensa, um tal clarão, atravessando as pálpebras cerradas de Deus, o despertasse do seu letárgico sono, demasiado tarde para conhecer-nos, é certo, porém a tempo de ver o princípio do nada, agora que tínhamos desaparecido (ESJC, p. 169).
O santo dos santos é diminuído até se tornar menos sábio que o próprio Diabo que, segundo a tradição cristã, foi um espírito criado por Deus, que por orgulho foi expulso do Paraíso e, segundo Saramago, embora decaído, criou o seu mundo muito mais justo que o criado por Deus. Para ele, o Diabo é um antiDeus e, como deus, é maior que Deus: (...) Ora, quando tal sucede, isto é, quando se tornou patente que Deus não vem nem dá sinal de chegar tão cedo, o homem não tem mais remédio que fazer-lhe as vezes e sair de sua casa para ir pôr ordem no mundo ofendido, a casa que é dele e o mundo que a Deus pertence (ESJC, p. 139).
Dessa forma, a narrativa de Saramago contribui para confirmar a teoria de Vacca: o homem vivendo de acordo com os seus próprios desejos, instintos, sem nenhuma preocupação com o futuro, criando para si mesmo uma era inercial, sem perspectivas futuras e, naturalmente, sem nenhum avanço espiritual: Uma Nova Idade Média às avessas, com certeza.


A profanação do sagrado

Através da teoria de Mircea Eliade, vamos presenciar os personagens do romance saramagueano transcontextualizados, sem a aura mítica, desmitificados e, dessa forma, perfeitamente capazes de terem uma vida igual a de todos os seres humanos.
Há mais de meio século, os eruditos ocidentais passaram a estudar o mito por uma perspectiva que contrasta com a do século XIX, por exemplo. Ao invés de tratá-lo na acepção usual do termo, isto é, como fábula, invenção, ficção, aceitaram-no tal qual era compreendido pelas sociedades arcaicas, onde o mito designa, ao contrário, uma história verdadeira e extremamente preciosa por seu caráter sagrado, exemplar e significativo. O mito é considerado uma história sagrada, verídica, porque sempre se refere a realidades.
De acordo com Mircea Eliade, em Mito e realidade, “nas histórias verdadeiras, defrontamo-nos com o sagrado e o sobrenatural; as falsas, ao contrário, têm um conteúdo profano” (MR, p. 14).
Segundo Mircea, os primeiros teólogos cristãos tomavam esse vocábulo na acepção que se impusera há muitos séculos no mundo greco-romano, isto é, de fábula, ficção, mentira. Conseqüentemente, recusavam-se a ver na pessoa de Jesus uma figura mítica e, no drama cristológico, um mito. A partir do século II, a teologia cristã teve de defender a historicidade de Jesus simultaneamente contra os gnósticos, bem como contra os filósofos pagãos.
No dizer de Mircea Eliade,
A presença maciça dos símbolos e elementos cultuais solares ou de estrutura misteriosa, no cristianismo, encorajou alguns sábios a rejeitar a historicidade de Jesus, (...) Ao invés de postular, no início do cristianismo, um personagem histórico do qual nada se pode saber, devido à “mitologia” da qual foi rapidamente revestido, esses sábios postularam, ao contrário, um “mito” que foi imperfeitamente “historicizado” pelas primeiras gerações de cristãos (MR, p. 142).
Os padres deram provas de espírito crítico e orientação historicista ao se recusarem a considerar os Evangelhos apócrifos e as logias agrapha como documentos autênticos. Eles abriram, não obstante, as portas para longas controvérsias no seio da Igreja e facilitaram a ofensiva dos não-cristãos ao aceitar não um, mas quatro Evangelhos. “Como havia diferenças entre os Evangelhos sinópticos e o Evangelho de João, foi preciso explicá-las pela exegese” (MR, p. 146).
Para Mircea, o exegeta deve ser capaz de se livrar dos materiais históricos, pois estes não passam de um trampolim. Insistir excessivamente na historicidade de Jesus, negligenciar o sentido profundo de sua vida e de sua mensagem, é mutilar o cristianismo, já que “os homens ficam maravilhados quando consideram os eventos de Jesus, mas se tornam céticos quando lhes é revelada a significação profunda, que eles se recusam a aceitar como verdadeira” (MR, p. 146).
Mircea Eliade diz-nos que ao proclamar às nações a divindade de Jesus Cristo, as primeiras gerações de cristãos proclamavam implicitamente sua trans-historicidade. Não que Jesus não fosse considerado um personagem histórico; mas acima de tudo salientava-se que “ele era Filho de Deus, o Salvador Universal que redimira não somente o Homem, mas também a Natureza” (MR, p. 146). Mais ainda: “a historicidade de Jesus já havia sido transcendida por sua Ascensão ao Céu e por sua reitengração na Glória divina” (MR, p. 146).
Ao proclamar a encarnação, a ressurreição e ascensão do verbo, os cristãos estavam convictos de que não apresentavam um novo mito. Na realidade, eles se utilizavam das categorias do pensamento mítico. Evidentemente, eles não podiam reconhecer esse pensamento mítico nas mitologias dessacralizadas dos pagãos e eruditos seus contemporâneos. Mas é óbvio que, para os cristãos de todas as confissões, o centro da vida religiosa é constituído pelo drama de Jesus Cristo.
A experiência religiosa do cristão baseia-se na imitação de Cristo como modelo exemplar, na repetição da litúrgica da vida e morte do Senhor, e na contemporaneidade do cristão com o illud tempus, que se inicia com a natividade em Belém e se encerra, provisoriamente, com a ascensão.
Entretanto, embora “o Tempo litúrgico seja um tempo circular, o cristianismo, herdeiro fiel do judísmo, aceita o Tempo linear da História” (MR, p. 147), pois “o Mundo foi criado uma única vez e terá um único fim; a Encarnação teve lugar uma única vez no Tempo histórico, e haverá um único Juízo” (MR, p.147).
Desde o início, o cristianismo sofreu influências múltiplas e contraditórias, sobretudo as do gnoticismo, do judaísmo e do paganismo. A reação da Igreja não foi uniforme. Os padres desencadearam uma luta sem tréguas contra o esoterismo da gnose; conservaram, entretanto, os elementos gnósticos apresentados no Evangelho de João, nas Epístolas Paulinas e em certos textos primitivos:
(...) tudo gira em torno da salvação do homem por Cristo; da fé, da esperança e da caridade; de um Mundo que é “bom” porque foi criado por Deus Pai e redimido pelo Filho; de uma existência humana que não se repetirá e que não é destituída de significação; o homem é livre para escolher o bem ou o mal, mas ele não será julgado apenas por essa causa (MR, p. 150).
De acordo com Mircea Eliade, o pensamento mítico pode ultrapassar e rejeitar algumas de suas expressões anteriores, tornadas obsoletas pela História, pode adaptar-se às novas condições sociais e às novas modas culturais, mas ele não pode ser extirpado. É possível que, nunca antes na história, “o artista tenha estado tão certo como hoje de que, quanto mais audacioso, iconoclasta, absurdo e inacessível ele for, tanto mais será reconhecido, louvado, mimado, idolatrado” (MR, p. 161).
O mito do artista maldito, que obsedou o século XIX, está hoje obsoleto, pois
(...) a audácia e a provocação há muito deixaram de ser prejudiciais ao artista. Ao contrário, pede-se que ele se amolde à sua imagem mítica, que seja estranho, irredutível e que “produza algo de novo”. É o triunfo absoluto da revolução permanente na arte. “Tudo é permitido” deixou de ser uma formulação adequada: qualquer inovação é considerada genial (MR, p. 161).
Pela primeira vez na história da arte não existe mais tensão entre os artistas, os críticos, os colecionadores e o público. Todos estão sempre de acordo, e muito antes de uma nova obra ser criada ou de um artista desconhecido ser descoberto. Uma única coisa importa: não correr o risco de ter de admitir um dia que não se compreendeu a importância de uma nova experência artística.
Sabe-se que, assim como outros gêneros literários, a narrativa épica e o romance prolongam, em outro plano e com outros fins, a narrativa mitológica. Em ambos os casos, trata-se de contar uma história significativa, de relatar uma série de eventos dramáticos ocorrido num passado mais ou menos fabuloso:
(...) é possível dissecar a estrutura “mítica” de certos romances modernos, demonstrar a sobrevivência literária dos grandes temas e dos grandes personagens mitológicos. Poder-se-ia dizer que a paixão moderna pelos romances trai o desejo de ouvir o maior número possível de “histórias mitológicas” dessacralizadas ou simplesmente camufladas sob formas profanas (MR, p. 164).
Finalizando, Mircea Eliade nos diz que a saída do tempo produzida pela leitura é a que mais aproxima a função da literatura à das mitologias:
O leitor é confrontado com um tempo estranho, imaginário, cujos ritmos variam indefinidamente, pois cada narrativa tem o seu próprio tempo, específico e exclusivo. O romance não tem acesso ao tempo primordial dos mitos; mas na medida que conta uma história verossímil, o romancista utiliza um tempo aparentemente histórico e, não obstante, condensado ou dilatado, um tempo que dispõe, portanto, de todas as liberdades dos mundos imaginários (MR, p. 164).
Talvez seja por isso que sentimos na literatura uma revolta contra o tempo histórico, o desejo de atingir outros ritmos temporais além daquele em que somos obrigados a viver e a trabalhar.
Ao iniciarmos a leitura de O evangelho segundo Jesus Cristo, imaginamos que a narrativa seria atribuída ao próprio Jesus e, para nossa surpresa, deparamo-nos com um narrador onisciente que nos relata toda a trajetória de nascimento, vida e morte de Jesus.
Julgamos que, numa proposta bastante ousada, esse narrador, ao nos contar o seu evangelho, tem uma visão bem diferente das dos quatro evangelistas bíblicos. Faz uma reviravolta nessa história, inverte, subverte e tenta profanar o que historicamente tem sido considerado sagrado para aqueles que acreditam no mistério da vida e da morte e na mensagem deixada por Jesus.
Poderíamos dizer que esse narrador faz uma repetição com diferença, trabalha com o texto bíblico numa articulação intertextual, pois segundo Laurent Jenny, podemos falar em intertextualidade quando encontramos num texto elementos anteriormente estruturados, quando temos uma idéia ou uma imagem contida nas entrelinhas, que estabelecem a mesma relação nos dois textos, sendo que essa relação pode até ser de inversão ou encenação fictícia recuperada, adaptada, pervertida ou contradita.
Para Jenny, intertextualizar é introduzir um novo modo de leitura que faz estalar a linearidade do texto e opera no leitor dois processos simultâneos; prosseguimento da leitura, “vendo apenas um fragmento como qualquer outro” e a volta ao texto de origem, fazendo da referência um elemento paradigmático ou deslocado, despertando uma sintagmática esquecida e um sentido já estabelecido.
Isso faz com que o discurso intertextual seja mais poderoso, torna-o uma super-palavra, pois seus constituintes são coisas ditas e às vezes sacralizadas, vindo de uma língua cujo vocabulário é a soma de todos os textos existentes, assumindo, desse modo, uma densidade excepcional de poder, riqueza e força, pois o texto de origem está virtualmente presente, portador de todo o seu sentido, sem que haja necessidade de enunciá-lo. Nesse sentido, o texto renuncia a seu aspecto temporário, “já não fala, é falado (...) como na reconstrução mítica em que colecionam mensagens pré-transmitidas para as reagrupar em novos conjuntos”.
Assim, começamos a presenciar, através do discurso saramagueano, um Jesus humanizado, conforme veremos na seleção dos exemplos abaixo: “O filho de José e Maria nasceu como todos os filhos dos homens, sujo do sangue de sua mãe, viscoso das suas mucosidades e sofrendo em silêncio. Chorou, porque o fizeram chorar e chorará por esse mesmo e único motivo” (ESJC, p. 83).
A seguir, o narrador refere-se ao nome de Jesus comparando-o, na sua inconsistência de recém-nato, ao pinto, ao cachorro e ao cordeiro: “(...) Jesus, mas ele ainda não pode saber que este é o seu nome, por enquanto não passa de um pequeno ser natural, como o pinto de uma galinha, o cachorro duma cadela, o cordeiro duma ovelha, (...)” (ESJC, p. 89).
Ainda com o mesmo objetivo de igualar Jesus a todos os homens, fala sobre sua sexualidade: “A boca encheu-se do sabor adocicado do leite materno, e a ofensa entre as pernas, insuportável antes, tornou-se distante, dissipava-se numa espécie de nascer, como se o detivesse um limiar, uma porta fechada ou uma proibição” (ESJC, p. 89), e de sua necessidade de alimentação, dizendo que a pede com voz de choro, como todas as crianças pequenas: “Jesus acordou (...) e pediu alimento com a sua voz de choro, única que ainda tem. Um dia, como qualquer um de nós, outras vozes virá a aprender, graças às quais saberá exprimir outras fomes e experimentar outras lágrimas “ (ESJC, p. 89).
O diálogo entre Maria e o anjo, a respeito da paternidade de Jesus, vem confirmar mais uma vez a dessacralização do discurso bíblico e a utilização parodística, pois, segundo o narrador, numa chuvosa e fria noite de inverno, um anjo entrou em casa de Maria de Nazaré, e dirigiu-lhe diretamente a palavra: “Deves saber, ó Maria, que o Senhor pôs a sua semente de mistura com a semente de José na madrugada em que concebeste pela primeira vez, e que, por conseguinte e conseqüência, dela, da do Senhor, e não da do teu marido, ainda que legítimo, é que foi engendrado o teu filho Jesus” (ESJC, p. 311).
Maria muito assombrada:
(...) Então, Jesus é filho de mim e do Senhor, Mulher que falta de educação, deves ter cuidade com as precedências, do Senhor e de mim é que deverias dizer, Do Senhor e de ti, Não, do Senhor e de ti, Não me baralhes a cabeça, responde-me ao que te perguntei, se Jesus é filho, Filho, o que se chama Filho, é só do Senhor, tu, para o caso, não passaste de ser uma Mãe portadora, Então, o Senhor não me escolheu, Qual quê, o Senhor ia só a passar, quem estivesse a olhar tê-lo-ia percebido pela cor do céu, mas reparou que tu e José eram gente robusta e saudável, e então, se ainda te lembras de como estas necessidades se manifestavam, apeteceu-lhe, o resultado foi, nove meses depois, Jesus, (...) (ESJC, p. 311-12).
Maria insiste com o anjo sobre a veracidade do que está a lhe contar:
E há certeza, o que se chama certeza, de que tenha sido mesmo a semente do Senhor que engendrou o meu primeiro filho, Bom, a questão é melindrosa, o que tu estás a pretender de mim é, sem tirar nem pôr, uma investigação de paternidade, quando a verdade é que nestes conúbios mistos, por muitas análises, por muitos testes, por muitas contagens de glóbulos que se façam, certezas nunca as podemos ter absolutas (...) (ESJC, p. 312).
Maria duvida: “(...) Um filho do Senhor, mesmo tendo-me a mim como mãe, dávamos por ele logo ao nascer, e quando crescesse, teria, do mesmo Senhor, o porte, a figura e a palavra, ora, ainda que se diga que o amor de mãe é cego, o meu filho não satisfaz as condições, (...)” (ESJC, p. 312).
O anjo, em confidência, diz à Maria:
(...) o Senhor não saberia viver doutra maneira, a palavra que mais sai da boca não é um sim, mas o não, Sempre ouvi dizer que o Diabo é que é o espírito que nega, Não minha filha, o Diabo é o espírito que se nega, se no teu coração não deres pela diferença, nunca saberás a quem pertences, Pertenço ao Senhor, (...) (ESJC, p. 312).
Após o diálogo com o suposto anjo do Senhor, Maria pede a Tiago e José para irem procurar Jesus e trazerem-no de volta, pois ela não mais duvidava do que de ele (Jesus) fosse o filho de Deus.
Quando José e Tiago encontram finalmente Jesus, ele se recusa a voltar para junto de sua família e indaga:
Quem é minha mãe, quem são os meus irmãos, meus irmãos e minha mãe são aqueles que creram na minha palavra na mesma hora em que eu a proferi, meus irmãos e minha mãe são aqueles que em mim confiam quando vamos ao mar para do que lá pescam comerem com mais abundância do que comiam, minha mãe e meus irmãos são aqueles que precisem esperar a hora de minha morte para se apiedarem da minha vida, (...) (ESJC, p. 324).
A transcontextualização paródica é muito evidente na exemplificação acima, pois as citações bíblicas, contidas no Evangelho de Lucas e de Mateus, são as seguintes:
E foram ter com ele sua mãe e seus irmãos, e não podiam se aproximar dele, por causa da multidão. E foi lhe dito: Estão lá fora tua mãe e teus irmãos, que querem ver-te. Mas respondendo ele, disse-lhes: Minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a palavra de Deus e as executam (Lc 8, 19-21).
E disse-lhe alguém: eis que estão lá fora tua mãe e teus irmãos, que querem falar-te, porém, ele respondendo, disse ao que falara: Quem é minha mãe? E quem são meus irmãos? E estendendo a sua mão para os seus discípulos, disse: Eis aqui minha mãe e meus irmãos; porque, qualquer um que fizera a vontade de meu pai que está nos Céus, este é meu irmão, e irmã e mãe (Mt 12, 47-50).
Desse modo, notamos em toda a narrativa de José Saramago uma construção ficcional que retoma os elementos bíblicos, tecendo um jogo intertextual. Conforme presenciamos, a paródia no romance saramagueano age com toda a sua força dessacralizadora e desmitificadora, executando uma verdadeira profanação no sagrado dogmático e oficial. O narrador irônicamente contextualiza as passagens bíblicas e propõe a instauração da desordem transcendente nessa sua narrativa, avessa ao discurso ideal da tradição e expressando o mundo caótico da modernidade:
Dizem os entendidos nas regras de bem contar contos que os encontros decisivos, tal como sucede na vida, deverão vir entremeados e entrecruzar-se com mil outros de pouca ou nula importância, a fim de que o herói da história não se veja transformado em um ser de excepção a quem tudo poderá acontecer na vida, salvo vulgaridade (ESJC, p. 222).
E continua:
E também dizem que é esse o processo narrativo que melhor serve o sempre desejado problema de verossimilhança, pois se o episódio imaginado e descrito não é nem poderá tornar-se nunca um facto, em dado da realidade, e nela tomar lugar, ao menos que seja capaz de o parecer, não como relato presente, em que de modo tão manifesto se abusou da confiança do leitor, levando-se Jesus a Belém para , dar de caras , mal chegou, com a mulher que esteve de aparadeira no seu nascimento, como se já não tivesse passado das marcas do encontro e os lamirés adiantados pela outra que vinha de filho ao colo, ali de propósito colocada para as primeiras informações (ESJC, p. 222).
Saramago, dessa forma, apresenta o seu descompromisso com uma moral e uma religião ortodoxas, encontrando, no entanto, na Bíblia os elementos para a sua narrativa ficcional.


Conclusão

Vivemos uma época em que tudo é permitido, uma época de discussão, de contestação, de questionamento de tudo o que a história, as artes, as ciências, a filosofia e a religião nos legaram.
Exatamente por isso, surgem, de quando em quando, obras paródicas, abordando temas bíblicos, como é o caso desse estudo.
Assim, ao percorrermos as páginas de O evangelho segundo segundo Jesus Cristo, pudemos conhecer uma nova versão da história do nascimento, vida e morte de Jesus, através de um narrador, que se autonomeia um evangelista.
Tivemos a oportunidade de verificar a narração de fatos coincidentes com o Evangelho, conforme os registros dos evangelistas bíblicos, e também de informações outras, contrárias a esses registros, e ainda outras mais inseridas, numa linguagem bastante irreverente e irônica, como pensamento ou criação desse narrador evngelista, numa visão bastante contemporânea.
Desse modo, presenciamos que o narrador objetiva redimir a figura do Diabo que, antes do nascimento de Jesus, aparece tomando a figura do anjo da anunciação para revelar à Maria o nascimento de seu filho. A partir desse momento, o Diabo irá acompanhar Jesus até o último instante de sua vida. Vemo-lo na gruta, logo após o nascimento de Cristo, pouco antes da fuga para o Egito; vemo-lo na barca, quando ele e Jesus conversam com Deus, momento em que arrependido, além de pedir perdão a Deus, pede-lhe que novamente seja incluído entre os anjos, o que lhe é negado; tornamos a vê-lo no momento da morte de Jesus, quando ele vem molhar os lábios do agonizante.
As figuras de Jesus e de Deus também sofrem uma inversão de valores, isto é, passam Jesus de Messias à condição de um indivíduo conduzido pelas circunstâncias, inconsciente e involuntariamente, o que o leva a se espantar diante da revelação na cruz quando Deus lhe aparece. Cristo é apresentado como um ser incapaz de dirigir o destino dos homens, pois é uma criatura frágil, cheia de conflitos interiores, que duvida de Deus e que não se crê nenhum missionário.
Deus perde os seus atributos, sendo apresentado como um ser falível, insciente, que necessita da permanência do Diabo no Mal para poder sobrexistir.
Enquanto o Diabo é um ser previdente e providente, bondoso (atende às necessidades dos homens e de Jesus) e justo (julga com justeza os atos humanos, vide o comportamento de José), Deus, ao contrário, se realiza na morte dos homens, valendo-se da violência e da força para defender as sua idéias e os seus valores. É assim que o narrador nos apresenta esses personagens-chave de seu evangelho. O romance saramagueano, de fato, parodia não apenas os Antigo e Novo Testamentos, mas interpretações feitas pelos teólogos, principalmente os que apareceram a partir do século IV, da nossa era.
Estamos vivendo, segundo Roberto Vacca e Umberto Eco, uma nova Idade Média, permanente e transitória, na qual os homens tentam elaborar um futuro melhor para a humanidade. Permanente, porque a transitoriedade se prolonga a fim de atender todas as áreas das atividades humanas. É uma época, segundo Affonso Romano, de destruição para reconstrução. Os valores antigos são contestados e substituídos por novos. É natural, portanto, que no interregno da substituição de valores exista um aparente caos, para, desse modo, fazer com que o novo venha a ser efetivamente melhor que o anterior.
A teologia, interpretando o Evangelho, introduziu idéias e dogmas, alterando consideravelmente os ensinos bíblicos. Por causa disso, houve sempre vozes, principalmente a partir do século IV, que se insurgiam contra essas interpretações. E o aumento dos discordantes cresceu tanto que no século XII foi criada a Santa Inquisição ou o Tribunal do Santo Ofício com o objetivo de defender as verdades religiosas da Igreja, acontecendo isso em plena Idade Média.
Hoje, no entanto, já não existe o Tribunal do Santo Ofício nem outra instituição que se lhe compare e, por esse motivo, a contestação tem sido feita nos próprios meios religiosos, uma igreja criticando a outra em reciprocidade, assim como está ocorrendo nas artes, na filosofia e na literatura.
Esse período, a que chamamos transitório-permanenete, faz com que o sagrado seja trazido ao terreno das discussões para que, despindo-se de todo e qualquer tipo de irracionalidade, possa reaparecer em outra forma que ilumine o homem, engrandecendo-o. O evangelho segundo Jesus Cristo trouxe à discussão os temas bíblicos, através do Antigo e Novo Testamentos, para que, mediante uma nova leitura desse testamentos, o homem possa vir a ter uma visão de um deus que se preocupa, real e efetivamente com o gênero humano.
A Bíblia é um livro sagrado para os judeus, árabes e cristãos. Deus, a Inteligência Suprema, é o ser reverenciado pela humanidade sob nomes os mais variados: Alá, O Grande Arquiteto, O grande Todo, Jeová, Javeh, Elohim e Aquele que é. Jesus, para a cristandade é o Filho de Deus, o Messias, o Cristo, O ungido de Deus. São, portanto, entidades sagradas.
Quando os homens, pelas letras e artes, buscam dessacralizar Jesus e Deus, certamente estão profanando esse nomes, reduzindo-os à dimensão humana.
Quando os homens, contextualizando os registros sagrados, inserem anotações e conceitos contrários aos desses livros, dessacralizando-os, estão profanando os ensinamentos sagrados neles contidos.
Evangelho quer dizer boa-nova, porque, seguindo a ótica cristã, consola, conforta, esclarece, transmitindo esperanças. Destarte, os tristes e sofredores encontram consolo em seus ensinamentos; os fracos e os tíbios também encontram conforto e se fortalecem em suas páginas luminosas; para poderem caminhar rumo à própria redenção. Evangelho: boa nova, consolo e esperança.
Diante do exposto, este irônico e irreverente narrador, situado nos limites do sagrado e do profano, poderá, de acordo com a ótica moderna, ser considerado um quinto evangelista?