sexta-feira, 14 de março de 2008

ENTRE O LIVRO E A TELA: A HORA DA ESTRELA

Há várias maneiras de se realizar a adaptação de uma obra literária para o cinema.
O cineasta ao fazer uma adaptação de um romance não o transforma absolutamente. Apenas manipula uma espécie de paráfrase, pois ele próprio será um novo criador de uma outra forma artística.
Ao analisar os diferentes tipos de transposição do livro ao filme, Yanick Mouren estabele, em um ensaio para a revista Poétique, a seguinte classificação: adaptação, contaminação e narrativização.
Ao tratar da adaptação, Marcos Rey, em O roteirista, diz que o romance será sempre limitado por uma linguagem, uma audiência reduzida e uma criação individual. Por outro lado, os limites do filme constituem-se de uma imagem movente, uma audiência de massa e, principalmente, uma produção industrial.
Salienta também que “um romance adaptado tem de caber confortavelmente dentro de um filme” (R, p.59).
A verdade, porém, é que não se pode adaptar um romance somente por sua importância literária. Há obras quase impossíveis de adaptação como, por exemplo, quase tudo que Clarice Lispector escreveu, assim como milhares de outros escritores. A câmera não tem a sutileza das palavras. É capaz de criar clima, porém sua profundidade não vai além.
Segundo Rey, “a câmera pode revelar o sentido duma obra literária, suas intenções, mas não o recheio nem a beleza ou singularidade do estilo”(R, p.59).
O que Rey escreve vai ao encontro da opinião de Clarisse Fulkeman, ao fazer a apresentação de A hora da estrela.
Segundo Fulkeman:
Toda trama se arma a partir de estórias que se entrecruzam, como num acorde musical: a vida de Macabéa, imigrante nordestina, que vive desajustada no Rio de Janeiro; a do autor do livro, que embora sem rosto definido, se dá a conhecer nos comentários que faz; e ainda a estória do próprio ato de escrever (E, p.6).
Ainda no dizer de Fulkeman:
(...)Escrever o livro, escrever Macabéa e, sobretudo, escrever a si mesmo, eis o grande desafio. Dessa proposta cria a dramaticidade da narrativa, pois a escrita envolve múltiplas e complexas relações: entre escritor e seu texto, entre escritor e seu público, entre escritor e essa personagem tão distante de seu universo (E, p.7).
O romance de Clarice Lispector gira em torno de um escritor-narrador, que se propõe a escrever uma história que terá sete personagens, sendo ele o mais importante deles. Diz que tem como material básico a palavra e questiona o motivo por que escreve:
Escrevo por não ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar para mim na terra dos homens. Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse a sempre novidade que é escrever, eu me morreria simbolicamente todos os dias (...) (E, p.36).
Em relação à sua personagem, tem o seguinte ponto de vista: “Apesar de eu nada ter a ver com essa moça, terei que me escrever todo através dela por entre espantos meus (E, p.41).
Descreve Macabéa da seguinte maneira: “de ombros curvados como os de uma cerzideira”(E, p.41), “com o corpo cariado” (E, p.51), era “um acaso, um feto jogado na lata de lixo embrulhado em um jornal”( E, p.52).
E questiona-se:
Há milhares como ela? Sim, e que são apenas um acaso. Pensando bem: quem não é um acaso na vida? Quanto a mim, só me livro de ser apenas um acaso porque escrevo (...). Para que escrevo? E eu sei? Sei não. Sim é verdade, às vezes também penso que eu não sou de mim. Sou eu? Espanto-me com o meu encontro (E, p.52).
Na realidade, o escritor, ao tentar criar a sua personagem, identifica-se com ela. Como escritor sente-se cariado, ou seja, reconhece-se como Macabéa. A idéia de uma pessoa que é “uma cárie” ou que tem “cáries em si” significa que aquele que precisa de um estilo, que está também cariado, está próximo da personagem.
O narrador também se sente tão ou mais insignificante quanto a Macabéa: “Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta, continuarei a escrever. Como começar pelo início, se as coisas acontecem antes de acontecer” (E, p.25). É como se ele dissesse que só existe, porque escreve; só se suporta, porque escreve.
Por fim, o narrador cria a sua história que, além dele e Macabéa, tem os seguintes personagens: Sr. Raimundo Silveira, Glória, Olímpico de Jesus, o médico e a cartomante.
E assim começa uma outra “estória”, como bem disse Fulkeman : A história de Macabéa, nascida no sertão de Alagoas.
Perdeu os pais quando nova e acabou sendo criada por uma tia solteirona, que, além de maltratá-la, não se importava com ela. Mudou-se com a tia para o Rio de Janeiro e, após a morte dela, foi viver em um pensionato, que mais parecia cortiço. Trabalhava numa firma e, praticamente, estava para ser despedida, pois era péssima datilógrafa. Era colega de trabalho de Glória, que acabou lhe roubando o namorado Olímpico, seu conterrâneo. Por não se alimentar direito, foi consultar um médico, que lhe disse estar tuberculosa. Ignorante, como era, não se alarmou, pois não tinha idéia da seriedade da doença. Sua colega Glória, por remorsos, sugere-lhe procurar uma cartomante. Empresta-lhe dinheiro e Macabéa acaba aceitando-o. A cartomante consegue tocar a alma de Macabéa, dizendo-lhe que ela teria um futuro brilhante, igual ao de uma estrela. Diz- lhe que será muito rica, pois se casará com um rapaz muito bonito, loiro e rico e que as cartas não mentem jamais. Ao sair da consulta, quando vai atravessar a rua, Macabéa é atropelada. Morre. Ao morrer, segundo o que o narrador-escritor sugere, vira uma estrela.
O fato de Clarice Lispector colocar, através do discurso do narrador, o questionamento sobre o ato de escrever, a nosso ver, é pura metalinguagem. Daí fazer eco à opinião feita por Fulkeman quanto a “estória do próprio ato de escrever”.
Rey salienta que “há adaptadores que mesmo não transpondo para o cinema toda a ação do livro, conseguem fazer passar para o público a carga emocional que possuem” (R, p.59). É, especificamente, o caso do filme A hora da estrela , dirigido por Suzana Amaral. Ela conseguiu transfigurar o livro para adaptá-lo a uma linguagem cinematográfica, criando uma obra
inteira, sem evidenciar saltos desconcertantes e buracos entre as seqüências.
Quem assistiu ao filme e leu o livro, percebe que o personagem principal no texto de Clarice Lispector é o escritor Rodrigo; no filme, Macabéa.
A adaptação, de acordo com Rey, requer uma planificação mais exigente do que a criação, porque implica numa responsabilidade maior, principalmente quando se trata de uma obra conhecida, passível de confronto.
Como o escritor escreveu um livro e não um roteiro de cinema, precisa haver adaptação, isto é, uma forma de contar para a tela, na linguagem, ritmo e especificidade que ela determina. ”Isso implica em mudar ordem de cenas, acelerar certas seqüências, resumir diálogos, valorizar ou não personagens, eliminar excessos e acentuar as linhas de convergência para o final”(R, p.60).
O filme A hora da estrela se concentra em definir a personagem Macabéa, investe nessa personagem, desenvolve, a partir de algumas indicações do que está no texto, a vida dessa personagem, mas essa definição é feita muito ligeiramente no texto de Clarice Lispector.
No filme, a narração é simples, direta, uniforme. O espectador quase não percebe a figura do narrador e se concentra apenas nas ações e nas personagens que se apresentam diante da câmera. A impressão que se tem é que o espectador não se dá conta de que existe alguém que está narrando. Ele vai apenas entrando em contato com os fatos que estão sendo narrados.
No livro, o narrador sempre fala da necessidade de expressar o que o motivou a escrever sobre essa personagem. É o caminho inverso que percorre Suzana Amaral, que passou pelo texto literário e resolveu dar vida a Macabéa.
Dissemos que o caminho foi inverso, porque o narrador, ao falar sobre Macabéa, fala sobre si mesmo. Isso quer dizer que o fato de ele ter cruzado com aquela mulher, que o levou a escrever, fosse o cruzar consigo mesmo. A questão do livro é o modo pelo qual o narrador vai escrever a história dessa personagem, já que ela é uma pessoa desinteressante. Significa que ele era tão insignificante quanto Macabéa, porque escrevia.
Segundo José Carlos Avellar, crítico literário, em palestra sobre A hora da estrela, realizada na semana de Cinema e Literatura, na Universidade Federal de Viçosa:
No filme, o personagem principal, que é o narrador, não aparece. O narrador simplesmente se coloca para a platéia como alguma coisa presente. Utiliza-se uma forma de narração, que é muito usada e muito eficaz, quando se trata de narrar uma história , que é a de fazer com que a passagem para outra imagem se dê em atendimento à “curiosidade visual” das pessoas (J, 20/09/94).
Avellar conta que Suzana Amaral coloca duas brincadeiras na tela, que são inseridas como forma de narração:
Existe uma certa curiosidade visual que o filme vai atendendo e construindo as suas imagens a partir dessa curiosidade visual. Para que essa forma de história através de imagens seja aceita mais naturalmente, exemplificaremos com a colega de quarto de Macabéa, que lia um livro, mas volta e meia voltava-se para a capa do livro. Estava lendo, quando uma das colegas pergunta-lhe porque toda hora ela se voltava para a capa. Aí, ela explica que é a única imagem do livro. (J, 20/09/94).
Em outro momento, Avellar relata que
uma das colegas de Macabéa estava vigiando a janela do vizinho. Ficava respondendo as perguntas das outras: “Já começou?”, sem que a gente saiba do que se trata. Então, todas correm para a janela para ver a televisão do vizinho ( J, 20/09/94).
E explica que
essa coisa de espiar o que se mexe, essa coisa de ter uma imagem, que conduz à leitura, é quase que um algo que vai chamando a atenção para a curiosidade visual, isto é, não é só palavra, não é só a harmonia da história que está contada no livro que faz com que a colega de Macabéa seja capaz de se interessar pela leitura. Ela precisa de uma imagem (J, 20/09/94).
Do mesmo modo que a colega de Macabéa precisou de uma imagem, podemos associá-la ao narrador do livro, que precisou também de uma imagem para desenvolver o seu discurso:
(...) É que numa rua do Rio de Janeiro peguei no ar de relance o sentimento de perdição no rosto de uma moça nordestina (...) Juro que este livro é feito sem palavras. É uma fotografia muda. (...) (E, p.26).
Ainda no dizer de Avellar: “Se a câmera se coloca numa posição se fixando em alguma coisa, cria-se uma expectativa de que alguma coisa vai acontecer”.
O primeiro impacto visual que se tem, ao iniciar o filme, é que a imagem se fixa em primeiro plano em um gato para, em seguida, fixar-se em Macabéa. O gato mia acompanhando o toque vagaroso das batidas que Macabéa dá na máquina de escrever.
No livro, não há gato, apenas uma referência do escritor-narrador de que Macabéa havia comido “gato frito” na infância. A impressão que nos dá, como espectadores, é que o aspecto sujo do gato se funde na sujeira de Macabéa.
Isso vai ao encontro de uma das definições que encontramos no Dicionário de símbolos sobre a palavra gato, que “simboliza a obscuridade e a morte”(S, p.463).
Há muitas imagens no filme que não podem se comunicar, a não ser através das imagens cinematográficas. Um exemplo típico é o de Macabéa olhando-se em um espelho todo carcomido ou ela toda desajeitada em sua vestimenta. Macabéa precisa ser vista através da imagem para que possamos senti-la, já que ela não é capaz de se dizer, nem de se expressar. Quando fala, diz coisas absurdas, como por exemplo, “eu gosto tanto de parafuso e de prego, e o senhor?”(E, p. 60). Quando Macabéa manifesta para o Olímpico algumas de suas dúvidas - e como o Olímpico é como ela, ou seja, uma espécie de Macabéa incapaz de dominar o discurso - ele corta as dúvidas dela com explicações absurdas:
- (...) A rádio relógio diz que dá a hora certa, cultura e anúncios. Que quer dizer cultura?
- Cultura é cultura - continuou ele emburrado. Você
também vive me encostando na parede.
- É que muita coisa eu não entendo bem. O que quer dizer “renda per capita”?
- Ora, é fácil, é coisa de médico (...) (E, p.67).

Há um diálogo entre Macabéa e Olímpico, a respeito do olhar significando escutar, que acontece assim:
- Olhe, Macabéa...
- Olhe o quê?
- Não, meu Deus, não é “olhe” de ver, é “olhe” como quando se quer que uma pessoa “escute”! Está me escutando?
- Tudinho, tudinho.
- Tudinho o quê, meu Deus, pois se eu ainda não falei! (...) (E, p. 71).

E no filme:
- Olhe, Macabéa...
- Olhar o quê?
- Não, não é “olhe” de ver alguma coisa. É olhe como quando a gente quer que alguém “escute”. Tá me escutando?
- Tô, tô, tudinho!
- Tudinho o quê, se eu ainda não falei! (...) (S,).

Embora os diálogos sejam praticamente iguais, o filme usa muito mais o tom , os gestos, o rosto, enfim, todo o recurso visual para fazer com que o ator interprete, traduza e transforme aquilo que a gente só percebe, se souber olhar.
Nota-se que Macabéa, ao se colocar em cena, revela a sua impossibilidade de relacionamento com as pessoas e com o mundo. Ela vai se fazendo na sua própria desorientação.
No livro, a cartomante conta a Macabéa que vira um trágico acidente na consulta anterior e que a cliente não havia gostado dessa predição. Já no filme, não há nenhuma referência a uma cliente da consulta anterior. Quando a cartomante pressente a morte de Macabéa, impotente de não saber como dizer isso para ela,usa de imaginação para descrevê-la, fazendo com que Macabéa saia feliz ao encontro de sua estrela.

CONCLUSÃO

No livro, uma das preocupações básicas do autor-narrador é com relação à linguagem literária, ou seja, com a metalinguagem. Isto se perde no filme, que em compensação ganha em outros aspectos como na construção da personagem Macabéa: um ser que sente vergonha o tempo todo, vive pedindo desculpas, abaixa a cabeça e toma aspirina sempre que pode, porque se dói por dentro.
Macabéa, no dizer de Clarice Lispector, se fosse mulher que se exprimisse diria: “o mundo é fora de mim, eu sou fora de mim”. Macabéa, mostra Suzana Amaral nas imagens do filme, quando se olha em um espelho, escolhe o mais su-jo, descascado e partido de todos , como se sua superfície assim pudesse mostrar o seu rosto.
Difícil dizer se o sentimento está na tela ou em nossos olhos de espectadores que para não nos sentirmos como Macabéa, procuramos agir como Olímpico.
Enfim, Macabéa é um ser que se perde na imensidão de sua existência. Estrangeira de sua própria imagem, a única via que se lhe descortina, o único horizonte de sua existência é o desfecho de sua história.
Como vimos, Macabéa é o extremo da sensação de isolamento e de comiseração. Tanto ela quanto Olímpico representam um pouco das pessoas que estão espalhadas por esse mundo afora.
Independente do grau de escolaridade, Macabéa não sabia fazer uso da palavra, aliás não havia nela uma seqüência lógica e estrutural em sua expressão vocabular. Era ignorante em todos os sentidos. Era, para ela mesma, a própria sombra, um apagamento total, sem anseios que a fizessem crescer como ser humano. Não se questionava e muito menos questionava a vida. Não queria se conhecer, talvez porque não tivesse consciência de que existisse.
A vida, para Macabéa, era como era, os dias passando e ela passando pela vida.
Se olharmos para dentro de nós mesmos, encontraremos um pouco de Macabéa. Quantas vezes, enfrentamos momentos de total inércia e de tamanha estagnação. Passamos pela vida como se fôssemos sombra de ninguém. Não sentimos vontade de despertar para a vida, quanto mais de enfrentá-la. Macabéa também representa uma boa parte daqueles que passam sem serem notados pelas pessoas que aí estão nas grandes cidades ou, quem sabe, perto de nós ou em nós mesmos.
Olímpico era tão analfabeto quanto Macabéa, só que ele se transvestia de superioridade, para encobrir a sua ignorância e fragilidade.
Macabéa, ao morrer, encontrou a sua hora da estrela.
A nosso ver, é como se o livro de Clarice Lispector e o filme de Suzana Amaral deixassem a seguinte mensagem: Quem não domina o seu discurso, não consegue sobreviver.

Um comentário:

  1. A estória de Macabéia é ao mesmo tempo triste e ao mesmo tempo inocente. Ela era uma pessoa inocente, sem maldades, sem grandes ou pequenas ambições. A vida era um curso monótono, feito tartaruga. Com um andar lento sem um destino certo. Viva Macabéia, que não tinha contas para pagar...

    Beijos,

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